Por: Alan da Costa Macedo, Doutorando em Direito do Trabalho e Seg. Social na USP; Mestre em Direito Público na UCP; Especialista em Direito Constitucional, Processual, Previdenciário e Penal.
Resumo
O presente artigo analisa o direito fundamental de acesso ao prontuário médico no ordenamento jurídico brasileiro, examinando as bases constitucionais, legais e regulamentares que garantem aos pacientes e seus representantes legais o direito de obtenção de cópias de documentos médicos para fins de exercício de direitos junto ao poder público e particulares. O estudo aborda a evolução normativa, desde a Constituição Federal de 1988 até as mais recentes resoluções do Conselho Federal de Medicina, passando pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e pela jurisprudência consolidada dos tribunais superiores. A pesquisa demonstra que, apesar da existência de um arcabouço normativo robusto, ainda persistem interpretações restritivas que dificultam o exercício deste direito fundamental, especialmente em casos envolvendo representantes legais de pacientes falecidos ou incapazes.
Palavras-chave: Prontuário médico; Direito de acesso; Sigilo médico; LGPD; Representação legal.
1. Introdução
O prontuário do paciente constitui um dos documentos mais importantes no registro do histórico de atendimento por diversos profissionais da área de saúde, no qual se registra ou deve registrar cada procedimento realizado, passando pelos atestados, laudos de exames e prescrições médicas, entre outros. Trata-se de um documento de propriedade do paciente, que tem total direito de acesso.
A questão do acesso ao prontuário médico transcende a mera relação médico-paciente, inserindo-se no contexto mais amplo dos direitos fundamentais à informação, à saúde e ao devido processo legal. No ordenamento jurídico brasileiro, este direito encontra fundamento em múltiplas fontes normativas, desde a Constituição Federal [1] até as resoluções específicas dos conselhos profissionais, passando pela legislação infraconstitucional e pela jurisprudência dos tribunais superiores.
A relevância do tema se manifesta especialmente quando o acesso ao prontuário médico se destina ao exercício de direitos junto ao poder público e aos particulares, como em demandas previdenciárias, ações de responsabilidade civil, processos criminais e procedimentos administrativos diversos. Nestes casos, o prontuário médico assume caráter probatório fundamental, constituindo-se em meio de prova essencial para a demonstração de fatos relacionados à saúde do paciente.
2. Fundamentos Constitucionais e Legais
2.1. Base Constitucional
Existem várias normas que regulam a utilização, a guarda, o direito de acesso entre outros em relação ao prontuário médico, mas a que está no topo da pirâmide é a Constituição Federal, a qual, no seu Art. 5º, XXXIII, garante que todos têm direito a receber dos órgãos públicos (ou delegatários do serviço público, tal como hospitais e estabelecimentos de saúde privados) informações de seu interesse particular, que deverão ser prestadas no prazo razoável, sob pena de responsabilidade [2].
O dispositivo constitucional estabelece um direito fundamental de acesso à informação que se estende aos estabelecimentos privados quando estes exercem atividades de interesse público, como é o caso dos serviços de saúde. Esta interpretação ampliativa do texto constitucional encontra respaldo na doutrina e na jurisprudência, que reconhecem a natureza pública da atividade médica, independentemente da natureza jurídica da entidade prestadora do serviço.
2.2. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais
A Lei 13.709/2018, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), representa um marco normativo fundamental na regulamentação do tratamento de dados pessoais, incluindo os dados de saúde contidos nos prontuários médicos. A LGPD prevê, em seu Art. 6º, inciso IV, o livre acesso e consulta facilitada e gratuita sobre a integralidade de seus dados pessoais, no inciso VI, a transparência no tratamento dos dados e no inciso X, a responsabilização e prestação de contas pelo agente responsável pela proteção, guarda e permissão de acesso aos dados pessoais [3].
No seu Art. 7º, inciso VIII, a LGPD prevê expressamente o tratamento de dados pessoais mediante fornecimento de consentimento pelo titular (Inciso I); para o exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral (VI); para proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro (VII) e para a tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizados por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária (VIII) [4].
A LGPD reconhece que os dados de saúde são dados pessoais sensíveis, merecendo proteção especial. Contudo, a lei estabelece hipóteses excepcionais em que o tratamento destes dados pode ocorrer sem consentimento, como na manutenção do prontuário do paciente, para atender a normas que preveem a guarda do documento para fins de utilidade pública, incluindo a fiscalização da atividade médica por parte do Conselho de Medicina [5].
2.3. Lei de Arquivos Públicos e Privados
A Lei 8.159/1991, que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados, estabelece em seu Art. 7º e §1º que os arquivos públicos são os conjuntos de documentos produzidos e recebidos, no exercício de suas atividades por órgãos públicos municipal, estadual ou federal, e que são, também públicos os conjuntos de documentos produzidos e recebidos por instituições de caráter público, por entidades encarregadas da gestão de serviços públicos no exercício das suas atividades (Hospitais privados, por exemplo) [6].
Esta disposição legal é fundamental para compreender que os prontuários médicos, mesmo quando mantidos por instituições privadas, assumem caráter público quando estas instituições prestam serviços de saúde, atividade de interesse público por excelência.
2.4. Lei de Acesso à Informação
A Lei 12.527/2011, que regula o acesso a informações previsto no Inciso XXXIII do art. 5º da CF/88, estabelece em seus arts. 31, 32, incisos e parágrafos que: a) O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais; b) As informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem, mas que tal consentimento é desnecessário quando para: b.1) prevenção e diagnóstico médico, quando a pessoa estiver física ou legalmente incapaz, e para utilização única e exclusivamente para o tratamento médico; b.2) cumprimento de ordem judicial; b.3) defesa de direitos humanos; b.4) proteção do interesse público e geral preponderante [7].
O Art. 32 da Lei 12.527/2011 estabelece que constituem condutas ilícitas que ensejam responsabilidade do agente público ou militar: I – recusar-se a fornecer informação requerida nos termos desta Lei, retardar deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa; II – utilizar indevidamente, bem como subtrair, destruir, inutilizar, desfigurar, alterar ou ocultar, total ou parcialmente, informação que se encontre sob sua guarda ou a que tenha acesso ou conhecimento em razão do exercício das atribuições de cargo, emprego ou função pública [8].
3. Regulamentação do Conselho Federal de Medicina
3.1. Prazo de Preservação dos Prontuários
O Art. 8º da Resolução CFM 1.821/2007 estabelece o prazo mínimo de 20 (vinte) anos, a partir do último registro, para a preservação dos prontuários dos pacientes em suporte de papel, que não foram arquivados eletronicamente em meio óptico, microfilmado ou digitalizado [9].
3.2. Código de Ética Médica e Acesso ao Prontuário
A Resolução CFM nº 2217/2018, Código de Ética Médica, em seus arts. 80 a 91, impõe vedações ao médico, as quais podem gerar alguma confusão na liberação do prontuário médico, imbróglio este que contribui para alta litigiosidade em demandas de exibição de documentos e de Mandados de Segurança. No Art. 88, estabelece que é vedado ao médico: “Negar ao paciente ou, na sua impossibilidade, a seu representante legal, acesso a seu prontuário, deixar de lhe fornecer cópia quando solicitada, bem como deixar de lhe dar explicações necessárias à sua compreensão, salvo quando ocasionarem riscos ao próprio paciente ou a terceiros” [10].
Representante legal é aquele que representa uma pessoa incapaz para a realização dos atos da vida civil. Para fins previdenciários, por exemplo, podem ser administradores provisórios os herdeiros necessários, sendo estes representados pelo cônjuge, ascendentes (avós, bisavós) e descendentes (filhos, netos, bisnetos).
Noutro turno, o Art. 89 do Código de Ética Médica estabelece que também é vedado ao médico: “Liberar cópias do prontuário sob sua guarda exceto para atender a ordem judicial ou para sua própria defesa, assim como quando autorizado por escrito pelo paciente” [11].
3.3. Resolução CFM nº 2.381/2024
A mais recente Resolução CFM nº 2.381/2024, publicada no DOU em 2 de julho de 2024, normatiza a emissão de documentos médicos e estabelece que documentos médicos são aqueles emitidos por médicos e gozam de presunção de veracidade, produzindo os efeitos legais para os quais se destinam. A resolução considera expressamente a Lei nº 13.709/2018 (LGPD) sobre dados pessoais sensíveis e confirma que somente médicos têm prerrogativa de diagnosticar enfermidades e emitir atestados [12].
4. Interpretação Jurisprudencial
4.1. Superação da Interpretação Restritiva
A jurisprudência é farta no sentido de superar a interpretação restritiva do Código de Ética Médica à luz da legislação ordinária de regência e da Constituição Federal. Os Tribunais têm reconhecido que o direito de acesso ao prontuário médico não pode ser limitado por interpretações excessivamente restritivas das normas éticas profissionais.
4.2. Desnecessidade de Prévio Requerimento Administrativo
Conquanto seja recomendável que a parte interessada faça o prévio requerimento administrativo para a instituição que tem guarda do prontuário médico( até por que como se poderia, por razões lógicas, se instituir um litígio sobre algo que não foi previamente negado?), há precedentes que entendem, inclusive, desnecessário, como preliminar de interesse de agir:
DIREITO CIVIL. APELAÇÃO EM OBRIGAÇÃO DE FAZER. NÃO ACOLHIMENTO DA PRELIMINAR DE INTERESSE DE AGIR. DESNECESSIDADE DE PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. MÉRITO. OBRIGAÇÃO DO ESTADO EM FORNECER PRONTUÁRIO MÉDICO PARA SALVAGUARDA DE DIREITOS. CARÁTER SIGILOSO QUE É OPONÍVEL PARA PROTEÇÃO DA PRIVACIDADE DO PACIENTE. PRECEDENTES DESTA EG. CORTE. RECURSO DE APELAÇÃO CONHECIDO E IMPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA. 01. No tocante à preliminar de ausência de interesse de agir, a mesma não deve ser acolhida, considerando a inexistência de obrigatoriedade de requerimento administrativo prévio para fornecimento prontuário médico pretendido, sob pena de violação ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição ((TJ-CE – AC: 01558289020138060001 Fortaleza, Relator.: MARIA VILAUBA FAUSTO LOPES, Data de Julgamento: 11/04/2022, 3ª Câmara Direito Público, Data de Publicação: 11/04/2022, grifou-se) [13]
AGRAVO INTERNO EM APELAÇÃO CÍVEL. CAUTELAR EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS. PRONTUÁRIO MÉDICO DO FALECIDO MARIDO DA AUTORA. INTERESSE DE AGIR . DESNECESSIDADE DE PEDIDO ADMINISTRATIVO. 1. Pretende a autora a exibição do prontuário médico do seu marido, falecido nas dependências do Instituto de Cardiologia São Miguel. Sentença de procedência . 2. Interesse de agir configurado. Suspeita de negligência médica. Exigência dos documentos pelo INSS . Art. 844, I, do CPC. 3. Desnecessidade de comprovação da recusa administrativa . Precedentes do STJ. Apelante que apresentou contestação, sem exibir os documentos solicitados, demonstrando sua resistência à pretensão autoral. 4. Excluída, de ofício, a aplicação de multa cominatória . Súmula 372 do STJ. 5. Desprovimento do recurso. (TJ-RJ – APL: 00169694320098190011, Relator.: Des(a) . MÔNICA MARIA COSTA DI PIERO, Data de Julgamento: 25/10/2011, OITAVA CÂMARA CÍVEL)
DIREITO INTERTEMPORAL. RECURSO. REQUISITOS MARCO. PUBLICAÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA . POSTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 13.105/15. REGÊNCIA PELO NOVO CPC. EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS . PRELIMINAR. INTERESSE DE AGIR. REJEITADA. PRONTUÁRIO MÉDICO . HOSPITAL. DEVER DE GUARDA E RESPONSABILIDADE. DISPONIBILIZAÇÃO DEVIDA. 1 . A análise do recurso deve considerar, em substância, a lei processual vigente ao tempo em que foi publicada a decisão recorrida. 2. A Lei 13.105/15 – Novo Código de Processo Civil – se aplica às decisões publicadas posteriormente à data de sua entrada em vigor, ocorrida em 18 de março de 2016 . 3. O acesso a prontuário médico é direito do paciente, seja para simples conhecimento, seja com outro objetivo, não podendo o médico ou qualquer instituição de saúde negar sua apresentação. (Art. 88 do Código de Ética Médica/Resolução CFM Nº 1 .931, DE 17 de setembro de 2009). 4. Há interesse de agir no ajuizamento de cautelar de exibição de documentos, com a finalidade de obter prontuários médicos. 5 . Não é necessária, para o ajuizamento de ação de exibição de documento, consistente em prontuário médico, a prova do prévio requerimento administrativo nem da recusa do hospital em concedê-los. 6. Cabe aos estabelecimentos de saúde, tanto privados como públicos, o dever de guarda e responsabilidade em relação aos prontuários médicos, devendo estes serem disponibilizados ao paciente quando solicitados. 7 . Preliminar rejeitada. 8. Recurso voluntário e reexame necessário conhecidos e desprovidos. (TJ-DF 20150110799832 DF 0019534-79 .2015.8.07.0018, Relator.: MARIA DE LOURDES ABREU, Data de Julgamento: 21/09/2016, 3ª TURMA CÍVEL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 07/10/2016 . Pág.: 357/375, grifou-se)
4.3. Dispensa de Reconhecimento de Firma em Procuração
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso, em decisão paradigmática, reconheceu que a exigência de reconhecimento de firma em procuração para obtenção de prontuário médico constitui excesso de zelo e exigência ilegal:
APELAÇÃO CÍVEL – OBRIGAÇÃO DE FAZER – REQUERIMENTO DE PRONTUÁRIOS MÉDICOS DE SEU CLIENTE, FEITO POR ADVOGADO MUNIDO DE PROCURAÇÃO – RECUSA DE ENTREGA – EXIGÊNCIA DE APRESENTAÇÃO DE PROCURAÇÃO COM FIRMA RECONHECIDA – PODERES ESPECÍFICOS PARA REQUERER TAIS DOCUMENTOS – EXCESSO DE ZELO – EXIGÊNCIA ILEGAL E DESARRAZOADA – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO. Ainda que a apelante se apegue a resoluções do Conselho Federal de Medicina, que recomendam que o documento procuratório tenha o reconhecimento da firma do paciente, tal norma não tem o condão de alterar a lei de regência, criando empecilhos ou dificuldades que esta não previu ( (TJ-MT – APELAÇÃO CÍVEL: 1027054-80.2021.8.11.0041, Relator.: GUIOMAR TEODORO BORGES, Data de Julgamento: 10/04/2024, Quarta Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 10/04/2024, grifou-se) [14]
O Estado Constitucional se apresenta, em algumas situações, com o que se chama de “ fatores reais de poder”, que são forças sociais, econômicas e políticas que moldam a realidade de um país, influenciando suas leis e instituições. Assim, uma constituição que não reflita a realidade social corre o risco de ser ineficaz e permanecer apenas no papel.
A fé pública dos advogados, também conhecida como o poder de autenticar documentos, é uma prerrogativa que lhes confere a capacidade de declarar a autenticidade de cópias de documentos apresentados em processos judiciais ou administrativos, sem a necessidade de reconhecimento de firma por tabelião ou outro agente com fé pública. Essa prerrogativa, estabelecida por lei, agiliza o andamento dos processos e reconhece a confiança depositada no profissional do direito.
A exigência de reconhecimento de firma do advogado, no exercício de sua função (munus público) é mais uma das abrangências restritivas praticadas por alguns órgãos públicos e instituições privadas que acabam tendo que ser resolvidas pelo Poder Judiciário.
A lei 8.906/94, Estatuto da Advocacia e Ordem dos Advogados do Brasil, ao regular o exercício da profissão, não excepciona em qualquer de suas linhas, em qualquer âmbito de atuação, em qualquer extensão, a necessidade do reconhecimento de firma nas procurações outorgadas aos advogados, assentando o art. 5º, §§1º, 2º e 3º6, como exigência suplementar, apenas a outorga de poderes especiais nos casos legais e nada mais. Ao contrário, autoriza, inclusive em juízo, o advogado, em algumas situações de urgência, a atuar sem procuração.
Segundo o Art. 133 da Constituição Federal, “ O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Exigências restritivas a sua atuação, tal como a exigência de firma reconhecida em procuração acompanhada de cópia da Carteira Profissional do Advogado, , ofendem diretamente a Constituição.
Igualmente, a Lei 13.726/18, a chamada “lei da desburocratização”, que no art. 3º, inciso I, registra que:
“Na relação dos órgãos e entidades dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios com o cidadão, é dispensada a exigência de:
I – reconhecimento de firma, devendo o agente administrativo, confrontando a assinatura com aquela constante do documento de identidade do signatário, ou estando este presente e assinando o documento diante do agente, lavrar sua autenticidade no próprio documento;
§ 1º: “É vedada a exigência de prova relativa a fato que já houver sido comprovado pela apresentação de outro documento válido.
Acrescente-se e repita-se, ainda, que gozam os advogados de fé pública, na medida em que, ao apresentarem fotocópia de qualquer documento, podem declará-lo autêntico, nos termos do art. 1º da lei 11.925/097, que modificou o art. 830 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT); art. 11, §1º da lei 11.419/158; e art. 425, inciso IV, do Código de Processo Civil (CPC) de 2015, sendo inegável que, para o Poder Constituinte Originário, o derivado e o Legislador Ordinário Brasileiro, os advogados ocupam degrau superior em confiança e credibilidade inatas ao histórico e ao pleno exercício da profissão.
Os precedentes abaixo são necessários para maior ilustração deste tópico:
REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. NEGATIVA DE ACESSO, À IMPETRANTE, ADVOGADA, A PRONTUÁRIOS MÉDICOS DE SEU CLIENTE, SOB A JUSTIFICATIVA DE NECESSIDADE DE APRESENTAÇÃO DE PROCURAÇÃO COM FIRMA RECONHECIDA. CÓPIAS DOS PRONTUÁRIOS REQUERIDAS PARA FINS DE ANÁLISE DE EVENTUAIS BENEFÍCIOS PRISIONAIS A QUE FAZ JUS O SEU CLIENTE JUNTO À VARA DE EXECUÇÃO PENAL . SEGURANÇA CONCEDIDA NA ORIGEM. MANUTENÇÃO. ATO ILEGAL E DESARRAZOADO. VIOLAÇÃO DAS PRERROGATIVAS DO ADVOGADO, PREVISTAS NA LEI Nº 8 .096/1994. IMPOSIÇÃO DE OBSTÁCULO INDEVIDO AO EXERCÍCIO DA ADVOCACIA. SENTENÇA CONFIRMADA EM REEXAME NECESSÁRIO. (TJPR – 5ª C . Cível – 0036302-04.2019.8.16 .0014 – Londrina – Rel.: Desembargador Carlos Mansur Arida – J. 09.03 .2020) (TJ-PR – REEX: 00363020420198160014 PR 0036302-04.2019.8.16 .0014 (Acórdão), Relator.: Desembargador Carlos Mansur Arida, Data de Julgamento: 09/03/2020, 5ª Câmara Cível, Data de Publicação: 12/03/2020)
APELAÇÃO CÍVEL COM REMESSA NECESSÁRIA –– MANDADO DE SEGURANÇA – PRONTUÁRIO MÉDICO – NEGATIVA DE FORNECIMENTO DE PRONTUÁRIO MÉDICO – ILEGALIDADE – FINALIDADE DE VIABILIZAR ORIENTAÇÃO E INSTRUÇÃO JURÍDICA – PRERROGATIVA DE ADVOGADO – DIREITO DO PACIENTE – VIOLAÇÃO AO DIREITO LÍQUIDO E CERTO – CONFIGURADO – SEGURANÇA CONCEDIDA – RECURSO DESPROVIDO – SENTENÇA RATIFICADA. A exigência de apresentação de procuração outorgada pelo paciente, com firma reconhecida em cartório e que constem os poderes para a finalidade em questão, consiste em medida altamente burocrática e que acaba por restringir o atendimento do profissional da advocacia. (TJ-MT 10095070320168110041 MT, Relator.: HELENA MARIA BEZERRA RAMOS, Data de Julgamento: 28/03/2022, Primeira Câmara de Direito Público e Coletivo, Data de Publicação: 09/04/2022, grifou-se)
4.4. Responsabilidade por Danos Morais
No precedente a seguir, definiu-se que a negativa do hospital de fornecimento de prontuário médico ao paciente constitui fonte de aflição e angústia e é capaz de atingir-lhe a esfera extrapatrimonial, especialmente frente ao seu receio de ver indeferido benefício previdenciário pleiteado junto ao INSS, caracterizando-se, portanto, o dano moral indenizável. Nesse sentido:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS – PRELIMINARES – ILEGITIMIDADE PASSIVA – PERDA DO OBJETO – NULIDADE DA SENTENÇA – INOCORRÊNCIA – PRONTUÁRIO MÉDICO – DEVER DE EXIBIÇÃO PELO HOSPITAL – DANO MORAL – CONFIGURAÇÃO – DEVER DE REPARAR DA ENTIDADE HOSPITALAR. Pretensão inicial que não se esgota no pedido de exibição de prontuário médico, mas também de indenização por danos morais, dirigidos a integrante da cadeia de fornecimento do hospital credenciado, conduz à pertinência subjetiva da demanda em relação à operadora de plano de saúde, segundo teoria da asserção. Não há nulidade da decisão, por falta de fundamentação, quando, ainda que se forma sucinta, foram apreciadas as questões de fato e de direito, bem como apresentados os motivos do convencimento do magistrado. Possui interesse processual aquele que ajuíza ação de obrigação de fazer com a finalidade de obter cópia de prontuário médico que não está em seu poder . Reformada parcialmente a sentença recorrida, necessário redistribuir os ônus na proporção da sucumbência reconhecida a cada uma das partes (art. 86,”caput”do CPC), devendo a fixação de honorários de sucumbência observar os parâmetros do art. 85, § 2º, I a IV, do CPC. A operadora do plano de saúde, uma vez desvinculada da pessoa jurídica da entidade hospitalar onde se aperfeiçoaram os serviços de assistência médica, não detém responsabilidade pela guarda do prontuário médico do paciente e, por isso mesmo, incabível atribuir-lhe o dever de exibi-lo, bem como de indenizar os danos morais disso advindos . A negativa do hospital de fornecimento de prontuário médico ao paciente constitui fonte de aflição e angústia e é capaz de atingir-lhe a esfera extrapatrimonial, especialmente frente ao seu receio de ver indeferido benefício previdenciário pleiteado junto ao INSS. O valor da indenização por danos morais deve ser fixado considerando o grau da responsabilidade atribuída ao réu, a extensão dos danos sofridos pela vítima, bem como os princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade. (TJ-MG – AC: 10000212141725001 MG, Relator.: Octávio de Almeida Neves, Data de Julgamento: 25/07/2022, Câmaras Cíveis / 15ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 27/07/2022, grifou-se) [15]
Um outro ponto crucial da responsabilidade civil médica é a relevância da conduta omissiva frente ao dever jurídico de diligência imposto ao profissional da saúde. Ainda que não se possa afirmar com absoluta certeza que a ausência de registros médicos possa ser a causa direta e imediata do danos ao paciente, a omissão do médico no adequado preenchimento do prontuário médico pode caracterizar a violação de dever jurídico essencial, com repercussões não apenas éticas, mas também jurídicas.
A atividade médica, apesar de ser de meio e não de resultado, exige do profissional a adoção de todas as condutas esperadas de um técnico prudente, inclusive aquelas de natureza documental, como a adequada anotação das intercorrências clínicas. Esse registro é parte integrante da atuação médica responsável, pois assegura a continuidade do cuidado, a avaliação retrospectiva do procedimento e, em eventual judicialização, a transparência quanto ao que foi efetivamente realizado.
Ademais, nos termos da teoria da causalidade adequada, adotada pelo Superior Tribunal de Justiça [ 16] , o foco não é mais a relação física e direta entre a conduta e o dano, mas sim a previsibilidade jurídica e a aptidão da omissão para, de forma adequada, contribuir para o resultado danoso. Se a ausência de monitoramento e de registros impediu o diagnóstico e a intervenção tempestiva, ou mesmo a demonstração posterior de que todas as medidas cabíveis foram adotadas, a conduta se revela juridicamente relevante para o desfecho prejudicial.
Portanto, a responsabilização do médico neste caso não decorre da adoção de um critério de culpa objetiva, mas sim da verificação de uma culpa por omissão, configurada pela negligência técnica em um contexto de risco elevado. Trata-se da consagração de um modelo de responsabilidade civil compatível com os princípios da dignidade da pessoa humana e da proteção integral da criança, conforme impõe o ordenamento jurídico brasileiro.
Daí que exsurge a obrigação de não apenas entregar o prontuário médico ao requerente, mas de entrega-lo sem omissões e dúvidas que possam lhe retirar a presunção de veracidade fática nele relatado.
4.5. Prontuário Médico para subsidiar direito a Dano moral
No precedente abaixo, analisou-se, em cautelar de exibição de documentos, a necessidade de fornecimento do prontuário médico para análise de eventual interesse em ação de indenização por danos morais por negligência médica. Ficou resolvido que o alegado sigilo profissional do médico, contido no seu Código de Ética não era oponível ao seu dever de fornecer o prontuário médico aos sucessores do de cujus. Nesse sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CAUTELAR DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS. PRONTUÁRIO MÉDICO DE PESSOA FALECIDA (MÃE DA AUTORA) . PRETENSÃO AO AJUIZAMENTO DE AÇÃO, POSTULANDO COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS, POR SUPOSTA NEGLIGÊNCIA MÉDICA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. IRRESIGNAÇÃO. ANÁLISE DO PRONTUÁRIO MÉDICO QUE É O ÚNICO MEIO HÁBIL À VERIFICAÇÃO DA CAUSA DA MORTE DA GENITORA DA DEMANDANTE . JUSTO MOTIVO PARA A OBTENÇÃO DO PRONTUÁRIO. DIREITO À INFORMAÇÃO. SIGILO PROFISSIONAL DO MÉDICO QUE, NO CASO, NÃO É OPONÍVEL RECOMENDAÇÃO N.º 03/2014 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, QUE ORIENTA NO SENTIDO DO FORNECIMENTO DO PRONTUÁRIO MÉDICO DE PESSOAS OBITUADAS AOS SEUS FAMILIARES OU SUCESSORES. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJ-RJ – APL: 00372381720128190038 RIO DE JANEIRO NOVA IGUACU 5 VARA CIVEL, Relator.: GILBERTO CAMPISTA GUARINO, Data de Julgamento: 14/09/2016, DÉCIMA QUARTA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 19/09/2016)
5. Sigilo Médico e Relativização
5.1. Caráter Não Absoluto do Sigilo
É cediço que o sigilo médico visa a proteção da intimidade do paciente, mas também se sabe que tal sigilo não é absoluto, podendo ser relativizado em casos em que as informações são solicitadas por sucessores para a defesa de direitos fundamentais do paciente falecido ou mesmo para defesa dos seus próprios direitos fundamentais, entre eles os previdenciários e sucessórios.
5.2. Legitimidade de Familiares
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais reconheceu a legitimidade de familiares para requerer prontuários médicos de paciente falecido:
EMENTA: DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DIREITO MÉDICO. APELAÇÃO CÍVEL. EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS. PRONTUÁRIOS MÉDICOS DE PACIENTE FALECIDO . LEGITIMIDADE DE COMPANHEIRA PARA REQUERER DOCUMENTAÇÃO MÉDICA. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO SIGILO MÉDICO. RECURSO DESPROVIDO. I . CASO EM EXAME – Apelação Cível interposta contra sentença que, em sede de “ação cautelar de exibição de documentos”, determinou a exibição de todos os prontuários médicos vinculados ao falecido companheiro da requerente, incluindo atendimentos, internações, exames e causa mortis, para esclarecimento das circunstâncias de seu falecimento e eventual responsabilização civil do Município. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO – A questão em discussão trata-se de estabelecer se a exibição dos prontuários médicos viola o dever de sigilo médico. III . RAZÕES DE DECIDIR – A companheira do falecido possui legitimidade para requerer a exibição dos prontuários médicos, considerando seu interesse em esclarecer as circunstâncias da morte e a eventual apuração de responsabilidades. – O sigilo médico visa a proteção da intimidade do paciente, mas não é absoluto, podendo ser relativizado em casos em que as informações são solicitadas por parentes para a defesa de direitos fundamentais do paciente falecido ( CC, art. 12, parágrafo único), sem que tal acesso represente violação do sigilo profissional. – A jurisprudência do TJMG reconhece o direito de acesso dos familiares ao prontuário médico de paciente falecido para verificar a regularidade da assistência médica e do tratamento recebido . IV. DISPOSITIVO E TESE – Recurso desprovido. Tese de julgamento: – A exibição dos prontuários médicos de paciente falecido a cônjuge/companheiro ou parente até o 4º grau não configura violação do sigilo médico e ofensa à intimidade, quando visa a tutela de seus direitos fundamentais. Dispositivos relevantes citados: CF, art . 5º, X e XXXIII; CPC, arts. 396, 397, 399, 400 e 404; Lei nº 12.527/20 11, arts. 6º, III, 21 e 31; CC, art . 12, parágrafo único. Jurisprudência relevante citada: TJMG, Apelação Cível nº 1.0024.13 .385834-0/001; Apelação Cível nº 1.0016.12.009737-9/001; Apelação Cível nº 1 .0313.14.017610-5/001; Apelação Cível nº 1.0607 .13.005135-4/001; Apelação Cível/Reex Necessário nº 1.0145.12 .039129-0/001. (TJ-MG – Apelação Cível: 60306197120158130024, Relator.: Des.(a) Renato Dresch, Data de Julgamento: 03/12/2024, Câmaras Cíveis / 7ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 10/12/2024) [17]
6. Aspectos Práticos e Procedimentais
6.1. Identificação dos Interessados
A Resolução CFM nº 2.381/2024 estabelece a obrigatoriedade de identificação dos interessados na obtenção de documento médico, tanto do examinado como de seu representante legal, que deve ser realizada a partir da conferência do documento de identidade oficial com foto e indicação do respectivo CPF [18].
6.2. Fé Pública dos Advogados
O Estado Constitucional se apresenta, em algumas situações, com o que se chama de “fatores reais de poder”, que são forças sociais, econômicas e políticas que moldam a realidade de um país, influenciando suas leis e instituições. A fé pública dos advogados, também conhecida como o poder de autenticar documentos, é uma prerrogativa que lhes confere a capacidade de declarar a autenticidade de cópias de documentos apresentados em processos judiciais ou administrativos, sem a necessidade de reconhecimento de firma por tabelião ou outro agente com fé pública.
A exigência de reconhecimento de firma do advogado, no exercício de sua função (munus público) é mais uma das abrangências restritivas praticadas por alguns órgãos que contrariam o ordenamento jurídico vigente e dificultam o acesso à justiça.
6.3. Interesse Processual
Os tribunais têm reconhecido que possui interesse processual aquele que ajuíza ação de obrigação de fazer com a finalidade de obter cópia de prontuário médico que não está em seu poder, sendo desnecessária a comprovação da recusa administrativa previa. Conquanto haja tal entendimento, sempre recomendamos que os interessados, por seus advogados, façam o requerimento administrative prévio, de forma fundamentada, de maneira a colaborar com o Poder Judiciário na redução da litigiosidade e mesmo para que se oportunize ao ente publico ou privado o fornecimento do documento de forma mais rápida e eficiente, evintando-lhe o constrangimento de uma ação judicial.
7. Responsabilidades e Sanções
7.1. Responsabilidade dos Agentes Públicos
De acordo com o §1º do Art. 32 da Lei 12.527/2011, atendido o princípio do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, as condutas de recusa ao fornecimento de informações serão consideradas: I – para fins dos regulamentos disciplinares das Forças Armadas, transgressões militares médias ou graves; ou II – para fins do disposto na Lei nº 8.112/1990, infrações administrativas, que deverão ser apenadas, no mínimo, com suspensão [20].
7.2. Improbidade Administrativa
Consoante o §2º do Art. 32 da Lei 12.527/2011, pelas condutas de recusa ao fornecimento de informações, poderá o militar ou agente público responder, também, por improbidade administrativa, conforme o disposto nas Leis nºs 1.079/1950 e 8.429/1992 [21].
7.3. Enunciado do Conselho Nacional de Justiça
O Conselho Nacional de Justiça, no seu Enunciado da II Jornada de Direito à Saúde, “66 – BioDireito”, estabeleceu que: “Poderá constituir quebra de confiança passível de condenação por dano, a recusa imotivada em fornecer cópia do prontuário ao próprio paciente ou seu representante legal ou contratual, após comprovadamente solicitado, por parte do profissional de saúde, clínica ou instituições hospitalares públicos ou privados” [22].
8. Desafios Contemporâneos
8.1. Digitalização e Prontuário Eletrônico
A crescente digitalização dos serviços de saúde e a implementação de prontuários eletrônicos trazem novos desafios para o direito de acesso. A Lei 13.787/2018 dispõe sobre a digitalização, guarda, armazenamento e manuseio dos prontuários eletrônicos, estabelecendo novos parâmetros para a preservação e acesso a estes documentos [23].
8.2. Proteção de Dados e Transparência
A LGPD trouxe um novo paradigma para o tratamento de informações de saúde, exigindo que os estabelecimentos de saúde informem a finalidade da coleta de dados pessoais e garantam aos pacientes diversos direitos, como direitos de informação, acesso, retificação e apagamento [24].
8.3. Harmonização Normativa
Um dos principais desafios contemporâneos é a harmonização entre as diversas normas que regulam o acesso ao prontuário médico, desde as resoluções do CFM até a LGPD, passando pela legislação de acesso à informação e pelas normas constitucionais.
9. Conclusão
O direito de obtenção de cópia de prontuário médico para fins de exigência de direitos junto ao poder público e aos particulares constitui um direito fundamental que encontra sólido amparo no ordenamento jurídico brasileiro. A análise empreendida neste estudo demonstra que existe um arcabouço normativo abrangente que garante este direito, desde a Constituição Federal até as mais recentes resoluções do Conselho Federal de Medicina.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXIII, estabelece o fundamento primário deste direito ao garantir o acesso a informações de interesse particular junto aos órgãos públicos e seus delegatários. Esta norma constitucional, de aplicação imediata e eficácia plena, não admite interpretações restritivas que possam comprometer o exercício do direito fundamental à informação. A extensão deste direito aos estabelecimentos privados de saúde decorre do reconhecimento de que a atividade médica, independentemente da natureza jurídica da entidade prestadora, constitui serviço de interesse público.
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018) trouxe importante contribuição para a regulamentação do tratamento de dados de saúde, reconhecendo expressamente o direito do titular ao livre acesso e consulta facilitada e gratuita sobre a integralidade de seus dados pessoais. A LGPD estabelece um regime jurídico que concilia a proteção dos dados pessoais sensíveis com o direito fundamental de acesso à informação, prevendo hipóteses específicas em que o tratamento de dados pode ocorrer sem consentimento, incluindo a manutenção do prontuário médico para fins de utilidade pública e fiscalização da atividade médica.
A Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) complementa este quadro normativo ao estabelecer procedimentos específicos para o acesso a informações pessoais e ao tipificar como condutas ilícitas a recusa ao fornecimento de informações, o retardamento deliberado ou o fornecimento de informações incorretas, incompletas ou imprecisas. As sanções previstas nesta lei, que incluem desde medidas disciplinares até a responsabilização por improbidade administrativa, demonstram a seriedade com que o legislador trata as violações ao direito de acesso à informação.
No âmbito da regulamentação profissional, o Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2217/2018) estabelece vedação expressa à negativa de acesso ao prontuário pelo paciente ou seu representante legal, bem como à recusa em fornecer cópia quando solicitada. A aparente contradição entre os artigos 88 e 89 do Código de Ética Médica tem sido superada pela jurisprudência, que adota interpretação sistemática e teleológica das normas, priorizando os direitos fundamentais sobre interpretações restritivas de normas infralegais.
A Resolução CFM nº 2.381/2024 representa importante avanço na regulamentação da emissão de documentos médicos, ao reconhecer expressamente a aplicação da LGPD e estabelecer critérios claros para a identificação dos interessados na obtenção de documentos médicos. Esta resolução confirma que os documentos médicos gozam de presunção de veracidade e produzem os efeitos legais para os quais se destinam, reforçando a importância do prontuário médico como meio de prova.
A jurisprudência dos tribunais superiores e dos tribunais estaduais tem sido consistente no reconhecimento do direito de acesso ao prontuário médico, superando interpretações restritivas e reconhecendo que este direito se estende aos representantes legais, familiares e sucessores do paciente. Os tribunais têm dispensado a necessidade de prévio requerimento administrativo como condição para o ajuizamento de ação judicial, reconhecendo que tal exigência poderia violar o princípio da inafastabilidade da jurisdição.
Particularmente relevante é o reconhecimento jurisprudencial de que a exigência de reconhecimento de firma em procurações de advogados constitui excesso de zelo e exigência ilegal, em desrespeito à fé pública inerente ao exercício da advocacia. Esta interpretação harmoniza-se com os princípios constitucionais de acesso à justiça e com as prerrogativas profissionais dos advogados.
A questão da relativização do sigilo médico tem encontrado tratamento equilibrado na jurisprudência, que reconhece que o sigilo não é absoluto e pode ser relativizado quando necessário para a defesa de direitos fundamentais do paciente ou de seus sucessores. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais estabeleceu tese jurisprudencial importante ao decidir que “a exibição dos prontuários médicos de paciente falecido a cônjuge/companheiro ou parente até o 4º grau não configura violação do sigilo médico e ofensa à intimidade, quando visa a tutela de seus direitos fundamentais”.
O Superior Tribunal de Justiça tem contribuído significativamente para a consolidação da jurisprudência sobre o tema, especialmente ao reafirmar que o adequado preenchimento do prontuário constitui dever legal do médico e que a negligência neste dever pode gerar responsabilidade civil. A decisão da Terceira Turma do STJ, relatada pelo Ministro Villas Bôas Cueva, estabelece importante precedente ao reconhecer que os registros no prontuário auxiliam o profissional em sua defesa, demonstrando a importância deste documento tanto para o paciente quanto para o médico.
Os tribunais têm reconhecido também que a negativa injustificada de fornecimento de prontuário médico pode gerar danos morais, especialmente quando tal negativa compromete o exercício de direitos do paciente, como a obtenção de benefícios previdenciários. Esta orientação jurisprudencial reforça a importância do cumprimento das obrigações legais relacionadas ao fornecimento de prontuários médicos.
O Conselho Nacional de Justiça, por meio do Enunciado 66 da II Jornada de Direito à Saúde, consolidou o entendimento de que a recusa imotivada em fornecer cópia do prontuário pode constituir quebra de confiança passível de condenação por dano, aplicando-se tanto a profissionais quanto a instituições de saúde, públicas ou privadas.
Os desafios contemporâneos relacionados à digitalização dos serviços de saúde e à implementação de prontuários eletrônicos exigem constante atualização do marco regulatório. A Lei 13.787/2018, que dispõe sobre a digitalização de prontuários, representa importante passo nesta direção, mas ainda são necessários aperfeiçoamentos para garantir que a transição para o meio digital não comprometa o direito de acesso.
A harmonização entre as diversas normas que regulam o acesso ao prontuário médico constitui desafio permanente para operadores do direito, gestores de saúde e profissionais médicos. É fundamental que as interpretações normativas priorizem sempre os direitos fundamentais dos pacientes, evitando interpretações restritivas que possam comprometer o exercício destes direitos.
Em síntese, o direito de obtenção de cópia de prontuário médico para fins de exigência de direitos encontra-se solidamente estabelecido no ordenamento jurídico brasileiro, contando com amparo constitucional, legal e jurisprudencial. As eventuais resistências ao exercício deste direito devem ser superadas mediante a aplicação correta das normas vigentes e o reconhecimento de que o acesso ao prontuário médico constitui direito fundamental indisponível.
A efetividade deste direito depende não apenas da existência de normas adequadas, mas também da correta interpretação e aplicação destas normas pelos diversos atores envolvidos: médicos, instituições de saúde, advogados, magistrados e demais operadores do direito. É fundamental que todos reconheçam que o prontuário médico não é propriedade do médico ou da instituição de saúde, mas sim documento que pertence ao paciente e que deve estar disponível sempre que necessário para o exercício de seus direitos.
A evolução normativa e jurisprudencial demonstra clara tendência no sentido de facilitar o acesso ao prontuário médico, superando interpretações restritivas e reconhecendo a primazia dos direitos fundamentais. Esta tendência deve ser mantida e aprofundada, garantindo que o direito de acesso ao prontuário médico seja exercido de forma plena e efetiva, contribuindo para a realização dos direitos fundamentais à saúde, à informação e ao devido processo legal.
Por fim, é importante destacar que o direito de acesso ao prontuário médico não se esgota na mera obtenção do documento, mas se estende ao direito de compreensão das informações nele contidas. Neste sentido, o artigo 88 do Código de Ética Médica estabelece também o dever do médico de fornecer explicações necessárias à compreensão do prontuário, garantindo que o paciente possa efetivamente utilizar as informações obtidas para o exercício de seus direitos.
A consolidação deste direito fundamental representa importante conquista da sociedade brasileira e deve ser preservada e aperfeiçoada, garantindo que todos os cidadãos tenham acesso pleno e efetivo às informações sobre sua saúde, elemento essencial para o exercício da cidadania e para a proteção de seus direitos fundamentais.
Referências
[1] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[2] Constituição Federal, Art. 5º, XXXIII. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[3] Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm
[4] Lei nº 13.709/2018, Art. 7º. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm
[5] Cartilha editada pelo CFM orienta médicos sobre a aplicação da LGPD. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/noticias/cartilha-do-cfm-orienta-medicos-sobre-uso-da-lgpd/
[6] Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8159.htm
[7] Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm
[8] Lei nº 12.527/2011, Art. 32. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm
[9] Resolução CFM nº 1.821/2007. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2007/1821
[10] Resolução CFM nº 2.217/2018 (Código de Ética Médica), Art. 88. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf
[11] Resolução CFM nº 2.217/2018 (Código de Ética Médica), Art. 89. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf
[12] Resolução CFM Nº 2381 DE 20/06/2024. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=461136
[13] TJ-CE – AC: 01558289020138060001 Fortaleza, Relator: MARIA VILAUBA FAUSTO LOPES, Data de Julgamento: 11/04/2022, 3ª Câmara Direito Público
[14] TJ-MT – APELAÇÃO CÍVEL: 1027054-80.2021.8.11.0041, Relator: GUIOMAR TEODORO BORGES, Data de Julgamento: 10/04/2024, Quarta Câmara de Direito Privado
[15] TJ-MG – AC: 10000212141725001 MG, Relator: Octávio de Almeida Neves, Data de Julgamento: 25/07/2022, 15ª CÂMARA CÍVEL
[16] STJ – Terceira Turma, Relator: Ministro Villas Bôas Cueva, Data de Julgamento: 29/07/2021. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/29072021-Mantida-condenacao-de-medico-que-negligenciou-preenchimento-de-prontuario-de-gestante.aspx
[17] TJ-MG – Apelação Cível: 60306197120158130024, Relator: Des.(a) Renato Dresch, Data de Julgamento: 03/12/2024, 7ª CÂMARA CÍVEL
[18] Resolução CFM nº 2.381/2024, Art. 3º. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=461136
[19] TJ-DF 20150110799832 DF 0019534-79.2015.8.07.0018, Relator: MARIA DE LOURDES ABREU, Data de Julgamento: 21/09/2016, 3ª TURMA CÍVEL
[20] Lei nº 12.527/2011, Art. 32, §1º. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm
[21] Lei nº 12.527/2011, Art. 32, §2º. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm
[22] Conselho Nacional de Justiça, Enunciado 66 da II Jornada de Direito à Saúde
[23] Lei nº 13.787, de 27 de dezembro de 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13787.htm
[24] Lei nº 13.709/2018 (LGPD), Arts. 6º e 18. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm